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Responsabilidade Civil do Transportador de Cargas e suas Hipóteses de Exclusão.

27/11/2020

por [Advogado] Henrique de La Corte

"Em obviedade, a mesma lei que previu as responsabilidades consignou também as hipóteses de exclusão da responsabilidade do transportador de cargas."

Inicialmente, precisamos deixar claro que o contrato de transportes é aquele pelo qual “alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas”, conforme se extrai da interpretação literal do artigo 730 do Código Civil Brasileiro.

Nessa ótica, podemos entender que o contrato de transporte subdivide-se em duas espécies: o transporte de pessoas e o transporte de coisas.

O escopo do presente artigo visa discutir tão somente a responsabilidade do transportador e as consequentes hipótese de exclusão da segunda espécie do contrato de transporte, o transporte de coisas ou cargas.

A responsabilidade civil do transportador de cargas no Brasil tem sua regra geral estabelecida pelo artigo 750 do Diploma Civil, que estabelece que “a responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento, começa no momento em que ele, ou seus prepostos, recebem a coisa; termina quando é entregue ao destinatário, ou depositada em juízo, se aquele não for encontrado”.

É de se concluir, portanto, que o contrato de transporte é um contrato de resultado, porquanto o transportador tem o dever de transportar a mercadoria incólume até a efetivação da entrega, sob pena de responder pelos danos da perda ou avaria.

A sobredita regra de responsabilidade, aliás, foi replicada nos artigos 9º e 14ª da Lei 11.422/07, a qual representa o marco regulatório do transporte rodoviário de cargas no país.

O marco regulatório buscou, entre outras questões, delimitar de forma objetiva a responsabilidade civil do transportador de cargas a fim de trazer maior segurança jurídica e econômica ao setor. Nesse contexto, previu de maneira clara a responsabilidade de todos os envolvidos no processo de transporte: o transportador, seus prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados, o expedidor e o recebedor da mercadoria.

Da análise acurada da lei, extrai-se que o transportador responde objetivamente pelos atos de seus empregados, agentes, prepostos ou terceiros contratados ou subcontratados, sejam atos comissivos ou omissivos. Todavia, a responsabilidade do transportador, limitada ao valor constante do conhecimento ou do valor declarado no contrato, só é admitida a partir do momento em que recebe a carga até sua entrega ao destinatário, de modo que a responsabilidade cessa com a entrega da mercadoria, desde que não hajam protestos ou ressalvas por parte do destinatário.

Em obviedade, a mesma lei que previu as responsabilidades consignou também as hipóteses de exclusão da responsabilidade do transportador de cargas. Assim, os artigos 12º e 13º consagraram as hipóteses de exclusão da responsabilidade transportador rodoviário, são elas: I - ato ou fato imputável ao expedidor ou ao destinatário da carga; II - inadequação da embalagem, quando imputável ao expedidor da carga; III - vício próprio ou oculto da carga; IV - manuseio, embarque, estiva ou descarga executados diretamente pelo expedidor, destinatário ou consignatário da carga ou, ainda, pelos seus agentes ou prepostos; V - força maior ou caso fortuito; VI - contratação de seguro pelo contratante do serviço de transporte, na forma do inciso I do art. 13 desta Lei.

A primeira hipótese diz respeito a quando o expedidor ou destinatário são os causadores diretos do dano à mercadoria transportada, ou seja, quando qualquer um dos que figuram no polo da relação de transporte age (ação ou omissão) direta ou indiretamente para ocorrência do dano.

A segunda hipótese, bem mais específica, parte do pressuposto de que expedidor é aquele responsável pela embalagem da carga e, assim sendo, isenta o transportador de responder pelos danos decorrentes da má escolha da embalagem (qualidade e adequação), pois deriva de fato alheio a vontade do transportador. Neste caso, cumpre pontuar que o transportador tem o dever de inspecionar a embalagem e registrar quaisquer ocorrências nesse sentido (artigo 6º da Lei 11.422/07).

A hipótese que exime a responsabilidade do transportador pelo “vício próprio” da carga, deriva da ideia de que há um problema inerente à própria mercadoria e, por tais razões, leva ao perecimento, avaria ou extravio do bem transportado. Nessa hipótese, o exemplo rotineiro é a expiração do prazo de validade da carga. De outro giro, a exclusão da responsabilidade pelo “vício oculto da carga” ocorre quando há um vício escondido na própria mercadoria, aquele vício que não pode ser identificado de plano transportador, o qual conduz a exoneração da responsabilidade do transmissor. Neste caso, podemos citar como exemplo o vício de fabricação ou produção da mercadoria.

A quarta hipótese permite a exclusão da responsabilidade do transportador pelo fato de ele não se envolver no processo de manuseio, embarque, estiva ou descarga da mercadoria, uma vez que estes seriam realizados diretamente pelo expedidor, pelo destinatário ou por seus prepostos. Nesses casos, não há como traçar uma linha de responsabilidade entre o dano ocorrido e a conduta do transportador, pois este último simplesmente não atua, age ou participa do processo, motivo pelo qual sua responsabilidade é afastada.

A penúltima hipótese – Caso Fortuito ou Força Maior – é, sem sombra de dúvidas, a questão mais controversa entre as excludentes de responsabilidade do transportador, e isso se dá porque ampliam incontavelmente as possibilidades de enquadramento nesta hipótese.

Respeitados os incansáveis debates doutrinários e jurisprudenciais acerca da diferenciação de caso fortuito e força maior, temos que para o marco regulatório do transporte rodoviário de cargas tais expressões são consideradas como sinônimos. Nessa linha de raciocínio, podemos entender que Caso Fortuito e Força Maior estão atrelados aos acontecimentos imprevisíveis, inevitáveis ou irresistíveis.

Nesse ponto, o presente artigo merece um significativo parêntese a fim que se possa trazer a baila certamente o exemplo mais controvertido desta hipótese, o roubo de carga.

Como é de conhecimento notório, o roubo de carga é, infelizmente, fato corriqueiro na vida dos transportadores brasileiros, constituindo-se como verdadeiro drama da logística de transportes em um país de dimensões continentais, cuja estrutura está basicamente apoiada em sistema unimodal de transporte, o rodoviário.

Segundo levantamento anual feito pela NTC&Logística (Associação Nacional do Transporte de Cargas e Logística), em 2019, o Brasil registrou 18.382 ocorrências de roubos de cargas. Entretanto, apesar da queda 17% em relação ao ano anterior, os prejuízos apurados pelo setor somam mais de 1,4 bilhão de reais.[1] Nesse contexto, a região sudeste ainda continua a sendo a mais afetada, com 68,16% das ocorrências.

Apesar deste cenário de considerável previsibilidade, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, desde 1994, entende que o roubo de carga constitui motivo de força maior capaz de afastar a responsabilidade da transportadora, a menos que seja demonstrado que ela não adotou as cautelas que razoavelmente se poderiam esperar. A tese foi fixada pela Segunda Seção no Recurso Especial nº. 435.865 e vem sendo reiterada desde então pelo Tribunal da Cidadania. É iterativa a jurisprudência:

AGRAVO INTERNO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL DA TRANSPORTADORA AFASTADA. 1. ROUBO DE CARGA. CARACTERIZAÇÃO DE FORÇA MAIOR. PRECEDENTES. VEÍCULO EM DESACORDO COM O SERVIÇO OFERECIDO. GERENCIAMENTO DO RISCO DE TRANSPORTE. SÚMULAS 5 E 7 DO STJ. 2. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. SÚMULA 211/STJ. OFENSA AO ART. 1.022 DO CPC/2015 NÃO SUSCITADA. INVIABILIDADE DE PREQUESTIONAMENTO FICTO. 3. APLICAÇÃO DE MULTA. NÃO CABIMENTO. RECURSO QUE NÃO SE MOSTROU MANIFESTAMENTE PROTELATÓRIO OU ABUSIVO 4. AGRAVO INTERNO IMPROVIDO. 1. O roubo de carga constitui força maior e exclui a responsabilidade da transportadora. Precedentes deste Superior Tribunal de Justiça (...) (AgInt no AREsp 1158339/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/02/2018, DJe 23/02/2018)

AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. TRANSPORTE DE MERCADORIA. ROUBO. EXCLUDENTE DE RESPONSABILIDADE DA TRANSPORTADORA. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. REDUÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. REEXAME DE PROVAS. 1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça firma-se no sentido de que, não obstante a habitualidade da ocorrência de assaltos em determinadas linhas, é de ser afastada a responsabilidade da empresa transportadora por se tratar de fato inteiramente estranho à atividade de transporte (fortuito externo). Precedentes. 2. No caso, o tribunal de origem destoou da orientação desta Corte Superior, ao reconhecer o dever de indenizar da transportadora, com base em fundamento genérico de que o roubo de cargas no Brasil é completamente previsível e que a transportadora deveria se precaver.(...) (AgRg no AREsp 175.821/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA,TERCEIRA TURMA, julgado em 23/08/2016, DJe 05/09/2016)

Por fim, a última hipótese de exclusão da responsabilidade do transportador - contratação de seguro pelo contratante do serviço de transporte - consiste na contratação de seguro contra perdas e danos causados à carga por parte do contratante dos serviços ou mesmo pelo transportador, quando não o feito pelo contratante.

Sem embargos, cabe pontuar que o parágrafo único do artigo 12º também previu que “não obstante as excludentes de responsabilidades previstas neste artigo, o transportador e seus subcontratados serão responsáveis pela agravação das perdas ou danos a que derem causa”, isto é, mesmo não tendo o transportador dado causa ao dano ou avaria da mercadoria, fica ele responsável por eventual piora do dano sofrido, devendo zelar pela mercadoria.

Nesse particular, considerando o cenário econômico brasileiro, a contratação de serviço de transporte rodoviário de cargas enseja a devida atenção para as hipóteses que excluem a responsabilidade do transportador, especialmente em caso de roubo de carga, a fim de que contratante, destinatário e transportador possam estar, desde o princípio, cientes de seus direitos e responsabilidades.

 

[1]Disponível em: https://setcemg.org.br/roubo-de-cargas-causa-prejuizos-da-ordem-de-14-bi-ao-setor/.